A morte do Atanásio brasileiro
(o Bispo Emérito de Anápolis, Dom Manoel Pestana Filho)
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
via e-mail
Atanásio significa imortal. É o nome do Bispo de Alexandria, Doutor da Igreja (300-373), que se destacou na defesa da divindade de Cristo, professada pelo Concílio de Niceia (325) contra a heresia do presbítero Ário, que reduzia Cristo a uma criatura de Deus. A firmeza doutrinal de Santo Atanásio custou-lhe a perseguição dos arianos por toda a vida. Por cinco vezes foi obrigado a abandonar sua cidade, transcorrendo 17 anos no exílio e sofrendo pela fé.
* * *
No início de 1988 (provavelmente em fevereiro), o monge Dom Marcos Barbosa, do Mosteiro de São Bento (Rio de Janeiro) irradiava em seu programa Encontro Marcado (Rádio Jornal do Brasil) uma pequena palestra intitulada “Um novo Atanásio”. Eram tempos difíceis aqueles. A “teologia da libertação” marxista tinha o apoio de vários bispos. Leonardo Boff era defendido contra o Papa João Paulo II, que lhe impusera silêncio por causa da obstinação em seus erros teológicos.
Dom Marcos Barbosa, ao afirmar que a CNBB não era mais confiável “por estar criando uma Igreja paralela (sic)”, fazia uma ressalva de vários bispos fiéis, entre os quais Dom Eugênio Sales (Rio de Janeiro), Dom Luciano Cabral Duarte (Aracaju), Dom José Freire Falcão (Brasília), Dom José Veloso (Petrópolis), Dom Boaventura Kloppenburg (Novo Hamburgo) e Dom Lucas Moreira Neves (Salvador)[1]. O herói da crônica, porém, era o Bispo de Anápolis, Dom Manoel Pestana Filho, em quem o monge beneditino descobrira “a ortodoxia e a fibra de um novo Atanásio”.
Leia-se o trecho da seguinte carta (citada por Dom Marcos Barbosa) de 20 de janeiro de 1988 enviada por Dom Pestana ao presidente da CNBB Dom Luciano Mendes de Almeida:
“Creio que já ultrapassamos os limites do tolerável. Nem mais seríamos canes non valentes latrare[2], responsáveis diante de Deus e da Igreja pelas inimagináveis consequências do nosso silêncio no meio do sofrido povo de Deus, se, estupidificados pelo engodo da ‘unidade’, continuássemos engolindo a infidelidade e apostasia que escorrem do alto. Não é apenas a fumaça de Satanás que entrou na Igreja, por alguma fenda oculta, como lamentava o Santo Padre Paulo VI: é, transpondo triunfalmente os portões, o diabo inteiro, presente nos mais altos postos, através de seus fiéis seguidores.
Um Cardeal, que depois de comunicar que nem tomaria conhecimento da passagem da imagem de Fátima pela sua Arquidiocese, pronuncia-se, na televisão, a favor da abolição do celibato eclesiástico – ou melhor, declara-o contra o direito – e defende o homossexualismo; a CNBB que assume oficialmente, para espanto dos Constituintes que ainda respeitam a Igreja, a posição do sinistro Frei Betto pela despenalização do aborto, como em vão propugnou Dom Cândido Padim em Itaici, na Comissão da Constituição e em plenário; a imposição prática de um texto da Campanha da Fraternidade, complementado pelo que a AEC, avançando ainda mais, preparou para os pobres colégios católicos, em que não sobra nem fraternidade nem fé; os cursos de lavagem cerebral para Bispos que, apenas transferidos de Itaici para o Embu, são agora apresentados como ‘cursos para bispos novos’ – e V. Exa. sabe muito bem quais são os seus organizadores e professores – TUDO ISSO claramente indica que o caminho que estamos seguindo não leva a Jerusalém nem muito menos a Roma: vai direto a Sodoma e Gomorra, que já não estão muito longe.
Revendo, para um curso de férias, as peripécias do Arianismo, Nestorianismo e Monofisitismo, pus-me a refletir no acerto de Franklin: ‘Não me importa o que hoje pensam de mim, mas o que dirão de mim daqui a cem anos’... E assusta-me a responsabilidade perante o presente e principalmente o futuro, que vamos alegre e levianamente assumindo”.
Em 19 de fevereiro de 1988, Dom Pestana enviou nova carta a Dom Luciano (citada por Dom Marcos Barbosa no mesmo programa):
“Agradecendo-lhe o envio de parabéns e a garantia de orações pelo aniversário de minha consagração episcopal, peço-lhe a caridade de ouvir-me ainda uma vez.
A situação eclesial brasileira se deteriora a olhos vistos, dia a dia. Lembra-me o espantoso processo de autodemolição de que falava Paulo VI. Um incrível masoquismo estéril e suicida, com graves danos para o Reino de Deus. O Sr. tem uma posição privilegiada nesse contexto. Pelo amor de Deus, pare um pouco. A velocidade embriaga. E há gente demais ligada ao seu desempenho.
Não se pode mais aceitar como conselheiros e mestres nas Assembleias da CNBB, muito menos como representantes da CNBB na Constituinte, tipos como Plínio da Arruda Sampaio, que vota pelo aborto e pelo divórcio; ou Hélio Bicudo que, conhecido por posições opostas aos princípios cristãos, ameaça de público levar o Papa ao Tribunal de Haia; ou outros confessadamente trotskistas (já os tivemos em Itaici), marxistas, etc, como, em livro, acaba de confirmar antigo assessor da Conferência.
Seria bem mais vantajoso desligar-me, acomodado, se a paralisia não fosse consciente e dolorosa. Veja nisto, desajeitada que pareça, a contribuição que posso oferecer para que a situação, que nos querem fazer irreversível, seja superada energicamente, enquanto é tempo.
Sei que muitos não creem em Fátima. Problema deles. Entretanto, o que vem acontecendo, ademais da atitude do Magistério eclesiástico autêntico, me leva a confiar, apreensivo, na Senhora da Mensagem, como chamou João Paulo II. E muita coisa diz respeito ao que agora se está vendo...”
* * *
A fama do Atanásio brasileiro chegou até o Rio de Janeiro, em cujo seminário eu estudava. Atraído por ele – assim como tantos outros de toda parte do Brasil e do mundo – transferi-me para a Diocese de Anápolis (GO), onde terminei meus estudos. Recebi de suas mãos a ordem sacerdotal em 31 de maio de 1992, festa da Visitação de Maria a Isabel (o encontro de duas mães com seus bebês no ventre).
Estaria, porém, totalmente enganado quem pensasse que Dom Pestana era irascível, autoritário e intolerante. Ao contrário, a mansidão, a simplicidade e o bom humor eram constantes em sua fisionomia. De espírito aberto, contentava-se com a unidade, mas não exigia a uniformidade. Dava-se bem com os mais diversos movimentos, inclusive com a Renovação Carismática Católica. Dizia frequentemente: “Não devemos apagar a mecha que ainda fumega” (cf. Is 42,3; Mt 12,20). Habitualmente celebrava a Missa de Paulo VI (Novus Ordo Missae), mas não se importava se algum sacerdote quisesse usar a forma extraordinária (Missa de São Pio V). Em sua prática pastoral, adotava o lema do grande reformador São Carlos Borromeu: “omnia videre, multa tolerare, pauca corrigere” (ver todas as coisas, tolerar muitas, corrigir poucas). Se nas cartas acima, ele se mostrou tão inflamado, foi porque – conforme dissera – já haviam sido ultrapassados “os limites do tolerável”. O escândalo causava nele – como em Jesus – uma santa cólera. Podia dizer com São Paulo: “Quem é escandalizado, que eu não me inflame?” (2Cor 11,29). Seu amor aos pequeninos fazia com que ele se consumisse de indignação contra o aborto. Rezava continuamente “pela inocência das crianças, pela pureza dos jovens e pela santidade das famílias”. Na esteira do Concílio Vaticano II, que chamou o aborto de “crime abominável”[3], Dom Pestana cunhou a jaculatória: “Coração Imaculado de Maria, livrai-nos da maldição do aborto”.
Sua militância pró-vida foi ao ponto de participar de uma “operação resgate” em frente a uma clínica de abortos em Nova Orleans (EUA). Em 1989, após a visita a Anápolis do grande Mons. Ney Sá Earp (coordenador do Movimento em Defesa da Vida do Rio de Janeiro) acompanhado de um grupo de militantes da Human Life International (Vida Humana Internacional), fundou o Pró-Vida de Anápolis, que se tornaria, no dizer de seu sucessor Dom João Wilk, “referência nas ações de defesa da vida e da dignidade da pessoa humana”[4]. Mesmo após o seu longo episcopado à frente de Anápolis (1979-2004), já como Bispo Emérito, Dom Pestana não se cansava de se dedicar à causa pró-vida. Em 11 de agosto de 2010, pressentindo a proximidade da própria morte e o perigo iminente de um terceiro governo petista, escreveu um apelo ardente aos Bispos, que circulou pela Internet:
“Caros irmãos no Episcopado,
Suportem-me, que o menor dos irmãos lhes possa dirigir uma palavrinha amiga, mas angustiada de quem se prepara, temeroso, para partir.
Pelo amor de Deus! Estamos diante de uma situação humanamente irreversível. A América Latina, outrora “Continente da Esperança”, como a saudava João Paulo II, hoje mergulha na antecâmara do terrorismo vermelho, aliás, como prenunciava aos pastorinhos de Fátima a Senhora do Rosário.
Podem parecer, a essa altura, resquícios de uma idade de trevas, mas tudo acontece como se ouviu em dezembro de 1917 (“a Rússia comunista espalhará seus erros pelo mundo, com perseguições à Igreja, etc.”). Assusta-me a corrupção dentro da Igreja, o desmantelamento dos seminários, a maçonização de Cúrias e Movimentos.
Horroriza-me a frieza com que olhamos tal estado de coisas. Somos pastores ou cães voltados contra as ovelhas? Somos ou não, alem disso, cúmplices de uma política atéia empenhada em apagar os últimos traços da nossa vida cristã?
Perdoem-me, mas não poderia deixar de falar, sem me sentir infiel à minha consciência e à minha Igreja.
Parabéns a Dom Luiz Gonzaga Bergonzini e a Dom Henrique Soares da Costa”.
O apelo de Dom Pestana não ficou sem frutos. Uma reação inédita contra o aborto surgiu de vários Bispos brasileiros. Não, porém, suficiente para impedir a eleição da candidata do PT. Angustiado pela vitória de Dilma Rousseff, Dom Pestana ainda encontrou forças para enviar-me uma mensagem de ânimo no dia 17 de novembro de 2010:
“Carissimo Pe Lodi:
Deus Nosso Senhor o abençoe sempre; Nossa Senhora o acompanhe e defenda a cada momento, para não nos vermos privados da sua lucidez e coragem.
O seu pronunciamento acerca do O poder da oração e uma vitoria da cultura da morte representa um estimulo para aqueles que sabem que uma batalha perdida não é uma guerra desperdiçada.
Quando se luta por Deus, a nossa fé não pode vacilar.
Cristo garantiu-nos que os poderes da morte do pecado não hão de vencer, e o Senhor nos pede não a vitória, mas a luta.
Ai daqueles que vacilam e baixam a guarda!
É aí que os inimigos avançam.
Muito obrigado pelo seu testemunho de verdadeiro apóstolo.
Continuamos rezando: é a nossa força”.
No dia 8 de janeiro de 2011, Dom Pestana faleceu em Santos (SP), sua terra natal, aonde tinha vindo visitar seus parentes e amigos, vítima de um enfarto do miocárdio. Entre os 84 padres por ele ordenados, um já é bispo e curiosamente se chama Atanásio: É Dom Atanásio Schneider, Bispo auxiliar em Karaganda, Casaquistão.
A morte de Dom Pestana foi o coroamento de sua missão pró-vida. Afinal, “se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). Ele morreu como vítima, oferecida com Cristo em nosso favor. Agora, ganhamos um intercessor junto ao Pai. Enquanto seu corpo, sepultado na Catedral do Bom Jesus em Anápolis, aguarda a ressurreição, desde já experimentamos os frutos imortais de sua caridade.
Anápolis, 8 de fevereiro de 2011.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] Hoje, graças a Deus, a Comissão Vida e Família da CNBB tem-se empenhado na defesa da vida humana, contra a despenalização do aborto.
[2]Cães incapazes de latir (Is 56,10).
[3] Gaudium et Spes, 51
-- Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz Presidente do Pró-Vida de Anápolis Telefax: 55+62+3321-0900 Caixa Postal 456 75024-970 Anápolis GO http://www.providaanapolis.org.br "Coração Imaculado de Maria, livrai-nos da maldição do aborto"
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